junho 26, 2004

Livro mostra que o governo Geisel quis fabricar bomba nuclear

Aluizio Maranhão - O Globo

RIO - Já há algum tempo se sabe que um dia a ditadura sonhou em ter bombas nucleares para se contrapor à Argentina, país que povoou os pesadelos de várias gerações de militares. Agora, em "A Ditadura Encurralada", quarto livro de Elio Gaspari sobre os anos de chumbo, surgem provas de que esse sonho chegou a ser mencionado abertamente em pelo menos duas reuniões do presidente Ernesto Geisel com o Alto-Comando das Forças Armadas.

O diário de Heitor Aquino Ferreira, um jovem capitão que assessorou Golbery do Couto e Silva desde o governo Castello Branco, nos tempos da fundação do Serviço Nacional de Informações (SNI), registra no dia 29 de setembro de 1973, no início da montagem do governo, a frase de Ernesto Geisel: "Eu não quero fazer bomba atômica." Não é o que seria dito depois.

Em 1972, o então presidente Emílio Garrastazu Medici comprou uma usina nuclear junto à americana Westinghouse (Angra I). O país adquirira uma caixa-preta. Ou seja, o negócio não previa qualquer cessão de tecnologia. O urânio enriquecido que movimentaria o reator seria fornecido pelos americanos.

Geisel.

A ampliação da capacidade de geração de energia elétrica por fonte termonuclear voltaria à agenda do país no governo Geisel. A Eletrobrás propusera um plano, aceito pelo Planalto, de, em seis anos, erguer oito ou nove usinas no Sudeste, um programa de no mínimo US$ 4 bilhões. Mas dessa vez o país não queria caixas-pretas.

Como o governo americano, recorda Elio Gaspari, desejava estimular a privatização do mercado em enriquecimento de urânio, a Westinghouse pôde oferecer um pacote no qual, além das usinas, havia a oferta de transferência de tecnologia de enriquecimento. Em junho de 74, o Brasil depositou US$ 800 mil como uma espécie de sinal pelo fornecimento futuro do combustível para as novas usinas.

Dentro do governo, mais precisamente no Gabinete Militar, o tema era tratado de forma nada inocente. Consta da proposta de texto feito pelo general Hugo Abreu para Geisel ler perante o Alto-Comando: "Devemos ter presentes as vantagens estratégicas e políticas conseguidas por qualquer país que chegue à explosão nuclear, com maiores motivações para aqueles que necessitem restabelecer prestígio internacional e coesão externa com impactos desse vulto."

Geisel deixou de lado o trecho, na fala à cúpula militar, mas o seguiu em sua essência. Disse que o governo queria um projeto pelo qual tivesse o controle do combustível das usinas, até porque acreditava que os argentinos estavam em condições de "futuramente fazerem sua arma, seu engenho nuclear". O presidente disse que, quando o Brasil atingisse um patamar mais elevado nesse setor, seria então a hora de se ver "se a gente consegue desenvolver uma tecnologia para produzir arma nuclear como os outros têm." Como, em 1968, o presidente Costa e Silva resistiu às pressões americanas e não assinou o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nuclear, o campo estava aberto para se seguir adiante.

Logo depois daquela reunião, os Estados Unidos, por causa da crise do petróleo, decidiu proteger os estoques de urânio enriquecido e voltou atrás em qualquer compromisso de fornecimento para futuras usinas no exterior. O depósito foi devolvido ao Brasil e foi aí que o governo voltaria a aproximar-se da Alemanha (em 1967 o chanceler Willy Barndt, em visita ao Brasil, mostrou interesse em ampliar a cooperação no campo da energia nuclear).

Elio Gaspari.

Em janeiro de 1975, ficava pronto o primeiro rascunho do Acordo Nuclear com a Alemanha. Em junho, numa segunda reunião com o Alto-Comando das Forças Armadas, Geisel relatou: "Estamos com negociações já muito adiantadas com a Alemanha (...), inclusive, para desenvolver energia nuclear e indústria nuclear dentro do país. (...) Eu não excluo a hipótese da chantagem da Argentina. (...) Eu não estou dizendo que o propósito do governo seja este, de procurar fazer arma nuclear, mas nós temos que nos preparar, tecnologicamente, etc., e ficarmos em condições de podermos prosseguir nesse caminho, conforme as circunstâncias."

Os arquivos de Golbery, onde Gaspari encontrou informações sobre essas reuniões de Geisel com o Alto-Comando, registraram, também, o comentário do general Antonio Jorge Corrêa, do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA):

- Acho que só com o fato de o país estar em condições de produzir ele já tem outro prestígio, outro..."

Geisel interrompeu-o:

- Ah, claro, tem outro status. Inclusive, vejam o seguinte: internacionalmente eles nos atribuem uma possibilidade que nós estamos longe de ter. (...) Se nós desenvolvermos bastante a nossa tecnologia nuclear, nós vamos facilmente chegar a isso."

Como se vê, os americanos tinha razão em temer os desdobramentos daquele acordo. Mesmo debaixo de pressões de Washington, Brasil e Alemanha assinaram o acordo, em 27 de junho de 1975. Geisel conseguia anunciar um programa no estilo do "Brasil Grande", no tom do governo do seu antecessor, Medici. E melhor ainda para Geisel, um convicto anti-americanista, isso era feito contra a vontade dos Estados Unidos.

Outro curto-circuito nas relações com os EUA foi o reconhecimento pelo Brasil do governo angolano do MPLA, sob proteção de soldados cubanos. Por uma dessas ironias, o Brasil dos generais e Cuba de Fidel estiveram juntos, de alguma forma, na mesma empreitada. A arriscada decisão da diplomacia brasileira - o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o governo de Agostinho Neto - se confirmaria acertada. Já o acordo com a Alemanha foi um fracasso, embora não tenha deixado de criar alguma capacitação tecnológica no Brasil, na área nuclear.

(O GLOBO)